
Paulo Rodrigues
Sola Fide: Pela fé, não por obras!
Uma análise sob a perspectiva histórico-teológica de um dos solas da reforma protestante
Edições Reformai
Capa: Elnatan Rodrigues
À Deus pai todo poderoso, criador do céu e da terra. À Cristo seu único filho, nosso Senhor. Ao Santo Espírito de Deus, divino consolador.
Nossa salvação é uma grande dádiva do céu. Imerecida, ela foi entregue a nós gratuitamente por Deus em Cristo, e aplicada à nossa vida pelo Santo Espírito. Há, porém, na Escritura, um meio pelo qual o pecador é recebido e justificado por Deus em Seu Filho, e este meio é a fé. Somente pela fé em Cristo Jesus, somente crendo que é impossível por seus próprios méritos ou por outro caminho que não seja o Filho de Deus, o pecador é enxertado na videira verdadeira e torna-se membro da aliança com o SENHOR.
A princípio, parece que não há como refutar ou não aceitar uma informação tão explicitamente clara nas Escrituras quanto esta, mas não é isto que a história nos mostra. Nem sempre o princípio de salvação somente pela fé em Cristo foi pregado com tanta nitidez.
Reconhecer a importância desse ensino em nossos dias tem sido imperativo, numa que percebemos que há no meio evangelical hoje um forte crescimento de seitas e heresias que propagam uma fé estranha àquela que deriva das Escrituras. Ao contrário do que foi visto no passado, agora nem a salvação é mencionada ao crente como sendo a maior benção que se pode obter, o que realmente importa é ser tão abençoado quanto possível no que diz respeito a realização financeira/profissional, “desfrutar do melhor desta terra”, e outros pensamentos que focam a ótica cristã neste mundo, algo que é terminantemente contrário ao que fala a Bíblia. São essas e outras razões que tornam o ensino da salvação somente pela fé, algo tão necessário para nós atualmente.
Nosso objetivo é em primeiro lugar é demonstrar a canonicidade do princípio da justificação/salvação através da fé em Cristo Jesus, remontando às Escrituras do antigo testamento, percebendo a progressão da revelação até chegar em seu clímax (Cristo). Em segundo lugar, entender como o mesmo princípio foi interpretado e aplicado no contexto do novo testamento pelos apóstolos, encerrando assim o cânon com todo o material revelado sobre o assunto. Por último, observar as deturpações sofridas por essa verdade, como ela foi corrompida e substituída pelo dogma de salvação pelas obras em determinado momento da história, e como a reforma foi importante no resgate da doutrina bíblica, aplicando a mesma ao nosso contexto, percebendo como essa verdade é relevante para nós hoje.
Não desejamos exaurir toda as questões e dúvidas que surgem ou poderiam surgir diante desse assunto, porém, é nossa vontade em Cristo que consigamos lançar luz e iniciar uma introdução que proporcione ao leitor um material básico, e que expanda a visão do mesmo, despertando o interesse sobre esse tema que como dito, é de altíssima relevância para a igreja do século XXI.
O desenvolvimento conceito de salvação desde o Antigo Testamento
Quando falamos em redenção, estamos falando na recuperação de algo que foi corrompido, no concerto de algo que foi quebrado, na restauração de algo que foi desestruturado, e assim de fato aconteceu com a humanidade. Em gênesis três, a narrativa da queda do homem aparece. Após ter desobedecido a ordem de Deus de não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, a raça humana é sentenciada a penas que serão símbolo de sua degeneração. Agora eles morrerão, terão uma vida difícil, a concepção tornar-se-á excruciante, e a relação entre homem e mulher (marido-esposa) será marcada por conflito, mas dentre todas as sentenças, uma mensagem de esperança e conforto é transmitida:
Em meio ao canto fúnebre de pesar e repreensão, no entanto, surgiu a palavra surpreendente de esperança profética da parte de Deus (Gn 3.15). Uma hostilidade divinamente instigada – “porei inimizade entre ti [a serpente] e a mulher, entre a tua descendência e o descendente [semente] dela – chega ao clímax com o surgimento triunfante de um “este” – sem dúvida um homem representativo da semente da mulher. Ele desferiria um golpe mortal na cabeça de Satanás, enquanto o máximo que a serpente poderia fazer, ou mesmo seria permitida a fazer, seria dar uma mordida no calcanhar desse descendente masculino.[1]
No versículo 15, um conflito é estabelecido com um desfecho também determinado. Uma rixa ferrenha entre duas posteridades, genealogias ou descendências: a semente da serpente contra a semente da mulher, ambas, protagonizarão o maior dos combates, uma luta de extrema oposição de um contra o outro. O príncipe da potestade dos ares, a antiga serpente que é o Diabo e Satanás, se envolveu em uma campanha cósmica para derrubar o Senhor do mundo, tirar de Deus Pai aquilo que, por direito, pertence somente a Ele. Satanás e sua semente estão em guerra contra Deus e seus filhos (Ef 6.12; I Jo 3.9-15)[2]. Porém essa luta terá um fim, quando o descendente da mulher, esmagar a cabeça da serpente, o que lhe custará um ferimento no calcanhar, como já foi dito.
Todo o plano de salvação está fundamentado nessa promessa: um homem, filho da mulher, viria e colocaria um ponto final em toda a agonia que o pecado e a queda causaram à humanidade. Essa é a grande informação que Gn 3.15 nos dá como fonte de alegria para aquela fatídica situação que engloba todos nós.
A partir desse ponto, todas as expectativas se concentram na chegada desse salvador, e isso fica claro em Gn 4, quando Eva aparece grávida e põe suas esperanças em que seu filho seja o prometido.
No capítulo 4, após Adão e Eva terem sido expulsos, Eva concebe um filho. E diante desse fato, uma expectativa é lançada sobre ele. Isso pode ser percebido através da celebração registrada em Gênesis 4.1b: “Esta [Eva] concebeu e deu à luz a Caim; então, disse: Adquiri um varão com o auxílio do SENHOR”. Esta ênfase de Eva, demonstra um entendimento sobre a promessa feita a ela por Deus em Gên 3.15 acerca do salvador. Caim era esperado como sendo aquele que poria fim ao exílio e ao pecado. Porém Eva está enganada. No momento de oferecer ofertas a Deus, sondando o coração, o SENHOR aceita a oferta de Abel, e rejeita a de Caim. Este por sua vez, movido de inveja, mata seu irmão. Toda a esperança é frustrada quando Caim revela-se como sendo semente da serpente, e não da mulher.
Se não era Caim o Messias esperado, a promessa continua em aberto. As expectativas permanecem, a esperança não morreu… aguarda-se o Salvador.
De agora em diante, a narrativa bíblica prossegue aumentando cada vez mais o nível de clareza acerca da promessa de redenção, e é exatamente nessa expectativa que consiste o plano de salvação no antigo testamento.
Em Noé, após a constatação da degradação em que caiu o homem e a execução do dilúvio como juízo sobre a humanidade, um pacto[3] é feito com vista à preservação da promessa de redenção e restauração. Em Noé, a linhagem humana é salva do dilúvio, o salvador ainda não chegou, então, a espera continua.
No chamado de Abraão, outro pacto é firmado (ou o antigo é confirmado), e neste, é prometido um povo, e por sua vez, deste, surgiria um descendente que abençoaria todas as famílias da terra.
Com Moisés, já o povo tendo sido estabelecido como cumprimento da promessa feita juntamente com o pacto anterior, a lei é dada, e anexada à lei uma nova esperança: “O Senhor teu Deus te levantará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, como eu; a ele ouvireis.” (Deuteronômio 18:15).
Avançando ainda mais na revelação, à Davi é prometido um filho, cujo o reinado que herdaria não teria fim: “Ele edificará uma casa ao meu nome, e me será por filho, e eu lhe serei por pai, e confirmarei o trono de seu reino sobre Israel, para sempre.” (1 Crônicas 22.10). Embora, num contexto imediato essa promessa refira-se a Salomão, o filho de Davi, alguns aspectos dela remetem à um cumprimento ainda a ser efetivado, como por exemplo o estabelecimento de um reino que duraria para sempre, ou seja, haveria um rei, da linhagem de Davi, que seria maior que o próprio Davi, e reinaria para sempre sobre Israel.
Neste último pacto, o caráter da promessa de um Messias fica ainda mais claro: O Messias englobaria todos os aspectos das promessas anteriormente feitas nos pactos com cada um dos nomes citados, cumprindo assim a profecia de Gn 3.15.
A partir de então na narrativa bíblica, tudo está apontando para a chegada do Messias, desde os utensílios do tabernáculo e a instituição das festas e do culto ao SENHOR, até as vozes proféticas ao longo dos tempos – de Elias à Jeremias e Ezequiel, em especial, profetas como Isaías e Zacarias. Até mesmo os livros poéticos, como os Salmos, apontam para Cristo, quando descrevem o caráter misericordioso e justo de Deus, seus atos em favor de seu povo, ou até mesmo com referências proféticas como o salmo 2, 45 entre outros.
Mas, o que isso tem a ver com salvação pela fé?
Muitas vezes, fazemos uma distinção entre o modo como a salvação acontecia no antigo testamento, e como ela acontece no novo, atribuindo ao primeiro um conceito de salvação pelas obras através da observação dos ritos e cerimônias cultuais (sacrifícios, festas, datas e etc). Porém, esta forma de analisar a salvação, desconsidera o quadro progressivo da revelação, e a própria revelação acerca de Deus e de como ele salvaria o seu povo.
A fé sempre foi o meio pelo qual a salvação foi aplicada ao povo tanto no AT, quanto no NT, a grande diferença é a forma como o objeto de fé é observado.
Através do quadro que apresentamos anteriormente, levando em consideração toda a progressão da revelação acerca do Salvador, uma palavra se destaca: expectativa. O povo de Deus no antigo testamento, era salvo por meio da fé no Messias que havia de vir, e isso era crido pelas palavras proféticas que eram reveladas, pela Lei e pelo culto ao SENHOR. Tudo isso, servia de base para que Israel cresse que Deus providenciaria um redentor que os salvaria do pecado, e restauraria a criação à um estágio de perfeição.
No antigo testamento, olhava-se para o futuro, esperando que o Messias viesse. Aguardava-se a chegada daquele que fora prometido: a semente da mulher, que esmagaria a cabeça da serpente. Analisaremos a partir de agora, o cumprimento dessa promessa, o clímax da revelação: Jesus Cristo.
O cumprimento da promessa em Jesus Cristo
A própria Escritura se encarrega de lançar luz para o momento da chegada do Messias, desde revelações menos claras e muito abrangentes como vimos que é o caso de Gn 3.15, até menções mais palpáveis e específicas como Isaías 7.14: “Portanto o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emanuel”.
Finalmente os evangelhos nos mostram esse que é o maior evento da história: a chegada de Cristo. Não apenas isso é narrado nos evangelhos, mas também o fato de que verdadeiramente Jesus é o cumprimento da revelação e do plano de salvação.
Várias passagens dos evangelhos demonstram isso, como os milagres narrados em Mateus e João apontando para a chegada do Reino e o caráter de Cristo como o Filho de Deus, tendo poder sobre demônios, elementos da natureza, sobre a morte e etc. Bem como, palavras do próprio Cristo que assevera a completude da revelação bíblica nEle, como é o caso de Lucas 4.21: “Então começou a dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta Escritura em vossos ouvidos”, quando Cristo, após ter sido batizado e tentado, afirma que o que fora prometido no livro do profeta Isaías, havia se cumprido com sua unção, dando início ao seu ministério.
A chegada de Cristo dá uma nova tônica a história da revelação. O que antes era anunciado como promessa, agora torna-se fato. A mensagem a ser anunciada não era mais de algo que viria, mas consistia no Reino de Deus que havia chegado em seu ungido. Antes a fé baseava-se na revelação de um momento futuro de restauração, agora o tema central do evangelho continua sendo o chamado à fé no Messias, mas com a diferença de crer que as portas da graça haviam sido já abertas, para que os eleitos e chamados em Cristo por Seu Espírito entrassem nesse reino.
Cristo revela como a salvação se consumará no Messias. Era necessário que Cristo morresse para que “como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; Para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (João 3.14-15). Através do cumprimento do pacto que havia sido quebrado em Adão, através do sacrifício do Cristo, a salvação é consumada e a perspectiva agora muda, não com relação ao modo como a salvação se processa, nem o objeto de fé, mas o direcionamento de observação que aqueles que recebem o Reino de Deus devem ter: antes olhava-se para frente, crendo no que viria, agora, olha-se para trás, crendo no que já veio.
A identidade de Cristo como Filho de Deus, também é um tema de máxima importância na mensagem de salvação. Algo que é abordado por João: “Jesus, pois, operou também em presença de seus discípulos muitos outros sinais, que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome.” (João 20:30,31). O apóstolo não está dizendo que os milagres deverão ser o objeto de fé que fará com que os que aceitam a Cristo como salvador sejam de fato salvos, mas seleciona uma coletânea de milagres que servirão para demonstrar que Jesus é o Filho de Deus, e que Ele sim, é o centro do evangelho e aquele por meio do qual a salvação é aplicada à vida dos eleitos.
É bem verdade que os autores neotestamentários possuem temas mais específicos com vistas uma melhor compreensão por parte de seus leitores acerca de seu escrito, como por exemplo Mateus e a chegada do Reino, Lucas e o seu relato acurado sobre os fatos, porém, é impossível que eles fujam dos dois temas que apresentamos (o cumprimento da promessa em Cristo/a identidade de Cristo como Filho de Deus), pois são basilares para a compreensão da mensagem do evangelho que agora seria pregada.
Outros escritores do novo testamento, tratam Cristo como sendo o apogeu da revelação bíblica. O escritor da carta aos Hebreus, demonstra isso no início do seu escrito: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho.” (Hebreus 1:1). O termo “últimos dias” (ἐπ’ ἐσχάτου τῶν ἡμερῶν), aponta para o modo como os cristãos do primeiro século viviam em relação ao desenrolar da história da redenção[4]. Eles acreditavam que de fato estavam vivendo os últimos dias (eschaton: a época do Messias), como um momento de completude que culminaria com o retorno prometido de Cristo.
O apóstolo Paulo, afirma que: “[…]vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei.” (Gálatas 4.4). A consideração de Paulo acerca da plenitude dos tempos está fincada na chegada de Cristo. Ele é o clímax da revelação e da história da salvação.
Com base em tudo isso, podemos perceber como a revelação alcança seu auge na pessoa de Cristo. A chegada do Messias demarca o início da nova aliança, que na verdade é uma renovação da anterior.
A promessa agora é fato. O que estava escondido foi relevado. O Salvador chegou, ele esteve entre nós; morreu e ressuscitou, e agora está assentado a destra do Pai de onde virá outra vez, para consumar sua obra derradeiramente. O que fora antes prometido, agora foi cumprido; o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo, morreu e ressuscitou. Agora, o mundo deve saber, o mundo deve conhecer essa verdade. O que nos leva ao nosso próximo ponto: Como essa mensagem foi pregada e demonstrada ao mundo?
(Atos 15 e a carta aos gálatas)
Os discípulos agora têm uma importante missão: ser testemunhas de Cristo no mundo, pregando o evangelho do reino, anunciando que a salvação só pode ser obtida em Cristo. O problema, é que essa mensagem não foi bem aceita pela comunidade religiosa mais próxima deles: os judeus.
Os cristãos judaizantes e a pregação aos gentios
Atos 15 e a carta aos Gálatas têm uma coisa em comum: ambas narram eventos que estão acontecendo na igreja em seus primórdios, e a grande massa do público que compunha a cristandade nesse período era formada por judeus, pessoas que estavam familiarizadas com toda a linguagem veterotestamentária sobre o Messias, com os profetas e suas menções ao Filho de Deus, ao Rei davídico, ao descendente de Abraão, ao profeta prometido por Moisés, e cientes de todas as figuras que apontavam para o salvador que viria, e que agora era apontado como sendo Jesus o Nazareno, que veio em carne, viveu entre nós, morreu e ressuscitou. Com isso atribuímos a esses cristãos, pelo menos nominalmente, uma participação na comunidade cristã. O problema aparece, quando o anúncio do evangelho começa a ser feito para os gentios.
Enquanto o evangelho estava circulando entre aqueles que guardavam todos os ritos e preceitos da tradição, que segundo os fariseus, interpretavam corretamente a lei de Moisés, tudo estava em paz. Mas quando se espalhou a notícia de que os gentios, pessoas que nunca foram circuncidadas ou observaram qualquer aspecto da legislação mosaica, estavam sendo recebido na igreja, “alguns que tinham descido da Judéia ensinavam assim os irmãos: Se não vos circuncidardes conforme o uso de Moisés, não podeis salvar-vos.” (Atos 15.1).
O problema consistia em os crentes que eram judeus terem duas dificuldades básicas: eles “acharam difícil acreditar que os gentios pudessem ser salvos e tornar-se membros do povo de Deus sem aceitar as obrigações da lei judaica. E ainda, como os cristãos judeus, que mantinham a observação da lei, poderiam ter comunhão com os gentios que não o fazem, e dessa forma eram considerados por aqueles como impuros?[5]
Embora na prática o problema descambasse para essas duas áreas; aceitação no meio cristão e comunhão, o cerne da questão é apenas um: os gentios não podem ser salvos, a menos que observem a lei. Mas porque isso seria motivo para se convocar um concílio? A resposta é simples: a soteriologia (doutrina da salvação) estava sendo deturpada, e é exatamente nesse ponto que se encaixa o tema do nosso debate.
Poderíamos simplificar as coisas, dizendo que para os cristãos judeus, a salvação não estava baseada (pelo menos não somente) na fé, mas nas obras, o que demonstra que eles entenderam errado todo o conceito da revelação que progrediu desde gênesis até os profetas, culminando no próprio Cristo.
Essa consideração equivocada da observação da lei como meio de salvação é fruto de um movimento que começou legítimo, mas com o tempo se corrompeu.
O judaísmo do século I que encontramos nas páginas dos evangelhos é derivado de um movimento que tentou manter pura a fé dada a Deus para eles desde o Sinai. Este por sua vez, nasceu no exílio babilônico, no ano IV a. C. Enquanto o reino do Norte já havia se corrompido com a idolatria e as práticas pagãs de outros povos, o reino do Sul se via numa situação que os direcionavam a tomar uma decisão.
Ou os judeus se entregavam inteiramente ao culto a Jeová, o único Deus verdadeiro, e por essa razão conservariam sua distinção de outros povos, ou seriam absorvidos pela cultura das nações para as quais foram levados em exílio.[6]
Se quisessem optar pela primeira, deveriam dar toda a atenção as exigências da lei, e estabelecer uma forma de culto que substituísse o rito que era praticado no templo, numa que com a invasão babilônica ele fora destruído. E foi exatamente o que fizeram.
Com o passar do tempo, aquilo que fora criado para ser um movimento que manteria a salvo a fé em Deus através do mantenimento da “tradição judaica”, tornou-se um jugo pesado e excruciante que mantinha o povo escravo à um pensamento que supunha colaborar de alguma forma para a salvação, principalmente levando em consideração o ingresso de muitos prosélitos na religião judaica, o que asseverava o pensamento dos fariseus com relação a esse posicionamento.
É esse judaísmo que chega aos tempos do novo testamento, inclusive criando situações de dissenção, como é o caso de Atos 15.
Neste episódio, a defesa da salvação pela fé somente, advogada na reunião por Paulo e Barnabé, consistiu em fazer notório para todos o que havia acontecido durante a campanha evangelística que empreenderam em sua primeira viagem missionária, demonstrando como a porta da salvação foi aberta os gentios através do derramamento do Espírito Santo.
Percebamos que nesta situação, os fatos quanto ao recebimento do Espírito encerram as provas necessárias para a constatação da salvação de gentios, e cumprem as profecias do AT que apontavam para isso. Porém há uma situação que agrava ainda mais a necessidade da convocação de um concílio para resolução do problema: o entrave na igreja da Galácia.
Os judaizantes na igreja da Galácia
A discussão no capítulo 3 da carta aos gálatas realmente demonstra um problema que poderia ser tipicamente levantado por judaizantes, embora estejamos nos referindo a um partido que de certa forma, como mencionamos antes, se considerava cristão: a filiação à Abraão. Essa é uma questão que retorna ao debate no meio cristão na carta de Paulo aos romanos, por exemplo no capítulo 4 e 5.
Para os judeus, o que garantia sua salvação ou sua estada na linhagem santa, era o fato de que eram descendentes de Abraão, inclusive quanto a observação dos rudimentos da lei (circuncisão, festas, cultos, sacrifícios etc.). Dessa forma, o primeiro questionamento de Paulo no início do capítulo 3, exibe o modo de como os judeus olhavam para a salvação: pelas obras da lei: “Ó insensatos gálatas! quem vos fascinou para não obedecerdes à verdade, a vós, perante os olhos de quem Jesus Cristo foi evidenciado, crucificado, entre vós? Só quisera saber isto de vós: recebestes o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé?” (Gálatas 3.1-2).
O problema é que Paulo já havia instruído aquela igreja a respeito da salvação, pela pregação do verdadeiro evangelho, porém, os gálatas rapidamente deixaram com que a mensagem da salvação pela fé somente fosse adulterada, sendo acrescentado o adendo das obras ao modo como Cristo deveria ser recebido, e isso se deu com a chegada de uma comitiva que fingia ter sido enviada pelos apóstolos e líderes da igreja de Jerusalém (algo que traria certo “prestígio”), e esta, também tentava solapar a autoridade de Paulo como apóstolo, conforme argumenta Calvino:
[…] ele (Paulo) estava sendo lançado nas sombras pelo brilhantismo de grandes nomes. Aqueles que reivindicavam o patrocínio de Pedro, Tiago e João reivindicavam também autoridade apostólica. […] Jerusalém era a mãe de todas as igrejas. Pois o evangelho fluíra dali para o mundo inteiro, e com justiça poderia ser chamada de a principal sede [primarias sedes] do reino de Cristo. Qualquer um que chegasse em outras igrejas, vindo de lá, era recebido com o devido respeito.[7]
Mais uma vez ressaltamos que essa questão pode parecer de pouca importância, mas na verdade está diretamente ligada a verdade do evangelho de Cristo, e se fosse ignorada poderia fazer ruir todo o prédio da igreja. O assunto em xeque não é simplesmente se Paulo é ou não apóstolo (no caso da carta aos gálatas), mas sim, se a salvação consiste em ser ofertada ao crente pela fé somente, ou se havia de fato alguma contribuição das obras na equação.
As considerações dessa facção judaizante estavam provocando o pensamento de que o crente ao aceitar a Cristo como seu Senhor e Salvador, deveria se submeter à circuncisão, às festas e toda a lei cerimonial como prova de que de fato havia se tornado descendência de Abraão. O apóstolo Paulo “percebeu que tais erros estavam também relacionados com uma opinião ímpia e destrutiva sobre o merecimento de justiça. E essa é a razão por que ele batalha com tamanho vigor e veemência”.[8]
A partir do verso 26 a questão é enfaticamente fechada, através da fala de Paulo: “Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus”, e no final do capítulo ele assevera: “Se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa”. A promessa feita no antigo testamento de que em Abraão todas as famílias da terra seriam benditas, se cumpre perfeitamente em Cristo; o descendente prometido, logo, se Cristo é recebido pela fé (como declara as Escrituras), então aquele que o recebe está diretamente conectado a verdadeira descendência de Abraão, que não será “adquirida” mediante qualquer observação da lei, pois a própria justificação de Abraão não foi considerada por Deus como uma ação ou obra, mas foi atribuída a ele pela fé: “Assim como Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça”. (Gl 3.6).
Conclusão
Fica evidente que em ambas as situações, o conceito que é aplicado no novo testamento é de completa rejeição ao pensamento de considerar que no processo de salvação está adicionado uma consideração às obras, principalmente sendo elas sombras que apontavam para o que havia de vir (Gl 3.23-25).
A única barreira que “poderia” exercer algum tipo de bloqueio entre os gentios e a salvação, era a barreira étnica, e ela foi definitivamente quebrada em Cristo e seu sacrifício. É importante reiterar que, qualquer um (de qualquer povo, língua ou nação) poderia obter a salvação no AT, já que o requisito era a fé no Messias que viria, porém a diferença era que o estrangeiro, deveria seguir todo o rito cerimonial da lei para isso (esse era o modo de externar a fé), contudo, no novo testamento, esse aspecto da lei deixa de ser observado, pois era, como dito antes, como sombras que apontavam e esperavam a chegada da luz, que é Jesus Cristo.
Cristo é o cumprimento da promessa, e somente crendo nisso é que é possível alcançar a misericórdia de Deus para a salvação.
Foi exatamente a essa decisão que chegaram os apóstolos e presbíteros que se reuniram em Jerusalém:
E por intermédio deles escreveram o seguinte: Os apóstolos, e os anciãos e os irmãos, aos irmãos dentre os gentios que estão em Antioquia, e Síria e Cilícia, saúde. Porquanto ouvimos que alguns que saíram dentre nós vos perturbaram com palavras, e transtornaram as vossas almas, dizendo que deveis circuncidar-vos e guardar a lei, não lhes tendo nós dado mandamento, pareceu-nos bem, reunidos concordemente, eleger alguns homens e enviá-los com os nossos amados Barnabé e Paulo, homens que já expuseram as suas vidas pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Enviamos, portanto, Judas e Silas, os quais por palavra vos anunciarão também as mesmas coisas. Na verdade, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor mais encargo algum, senão estas coisas necessárias: Que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da fornicação, das quais coisas bem fazeis se vos guardardes. Bem vos vá. (Atos 15.23-29)
A partir da resolução do concílio de Jerusalém, toda a igreja cristã aderiu ao conceito bíblico que é expressado pelo apóstolo Paulo diante da pergunta do carcereiro de Filipos, por exemplo: “E eles disseram: Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa.” (At 16.31). Essa era a confissão da igreja; que a salvação dependia unicamente da fé, e esse pensamento perdurou por um longo período, até determinado momento, onde o erro parecia voltar ao cenário cristão.
A deturpação do princípio iniciou-se não de forma direta, como ocorreu em Jerusalém ou na Galácia; um ataque franco à teologia da salvação, mas a questão que abriu as portas para o debate foi a interferência da igreja na vida dos fiéis.
No começo da idade média, por volta do ano 500 d. C., quando a autoridade do bispo de Roma começou a ser supervalorizada em detrimento dos demais, por meio da eleição de nobres, decisões imperiais e administração do império, tudo isso foi atribuído ao agora “pontífice máximo” (pontifex maximus), que agora também ab-rogava para si o poder de interferir na vida individual do crente, principalmente com relação a sua salvação em Cristo.
Por causa da disputa quanto ao poder e outros fatores, a igreja entrou em uma profunda crise, da qual nunca conseguiu se ver livre, embora tenha vivido momentos de certa estabilidade.
Com o reavivamento beneditino, movimento que se iniciou no começo do ano 1000 d. C.., as regras que sistematizavam um estilo de vida mais “moral” e “cristão”, alimentou a formulação de um pensamento que potencialmente parecia provocar um sentimento de que as obras poderiam e deveriam estar aliadas à fé com vistas a salvação. Muito embora, seja honesto falar que esse mesmo movimento foi deveras bom para a cristandade de modo geral, chegando a influenciar o pensamento de expoentes da reforma como o próprio Lutero.
Porém, nem mesmo o movimento monástico conseguiu remediar a crise que a igreja católica sofreu ao longo do desenvolvimento da sua teologia. Até que no século XIV, a crise chegou ao seu clímax.
Como explica Oswaldo Schüler:
Situamos a crise interna da igreja nas relações que haviam assumido três ordens de fatores: leigos e clérigos, tradução e Bíblia, fé e obras. A igreja havia evoluído para a supremacia dos clérigos sobre os leigos; da equiparação da tradição com a Bíblia e da supremacia das obras sobre a fé.[9]
Embora, esses três pontos em que se baseiam a crise da igreja estejam intimamente ligados, nossa atenção volta-se para o último deles: a supremacia das obras sobre a fé.
A interferência da igreja na salvação entra exatamente no ponto nevrálgico da relação do crente e a sua fé. A bula unan sanctam publicada pelo Papa Bonifácio VIII em 1302 assevera a relação da igreja visível, como sendo o fator determinante para que o crente possa ser salvo. No primeiro parágrafo da bula, ele declara:
Una, santa, católica e apostólica: esta é a Igreja que devemos crer e professar já que é isso o que a ensina a fé. Nesta Igreja cremos com firmeza e com simplicidade testemunhamos. Fora dela não há salvação, nem remissão dos pecados, como declara o esposo no Cântico: “Uma só é minha pomba sem defeito. Uma só a preferida pela mãe que a gerou” (Ct 6,9). Ela representa o único corpo místico, cuja cabeça é Cristo e Deus é a cabeça de Cristo. Nela existe “um só Senhor, uma só fé e um só batismo” (Ef 4,5). De fato, apenas uma foi a arca de Noé na época do dilúvio; ela foi a figura antecipada da única Igreja; encerrada com “um côvado” (Gn 6,16), teve um único piloto e um único chefe: Noé. Como lemos, tudo o que existia fora dela, sobre a terra, foi destruído.[10]
É válido elucidar que, nós cremos que de fato fora da igreja de Cristo não há salvação, pois Cristo morreu pelo seu povo, sua igreja, logo somente em Cristo pode haver salvação, mas fazemos a distinção entre a igreja visível (instituição), e a igreja invisível (o povo). Além disso, a declaração da bula encerra a ideia de que a igreja é o meio pelo qual a salvação é adquirida, quando diz: “fora dela não há salvação, nem remissão de pecados”, o que não possui fundamentação bíblica, pois somente o sacrifício de Cristo tem poder para perdoar pecados, e não a instituição.
É com base nesse pensamento, que a igreja de Roma pensa ter alguma influência no processo de salvação, fazendo das obras uma contribuição para tal. Nasce assim o caráter salvífico dos sacramentos de penitência, confissão e a eucaristia.
Ressaltando o primeiro citado, a penitência liga-se diretamente a questão das indulgências. A finalidade desta é a obtenção do perdão de pecados cometidos depois do batismo.[11]
Em síntese, o pensamento católico que corrompeu o princípio bíblico de salvação pela fé somente, consiste em uma contribuição das obras em adição a fé que resulta na salvação. Conforme alega o concílio de Trento:
A esta disposição ou preparação se segue a própria justificação. Ela é não somente a remissão dos pecados [cân. 11], mas ao mesmo tempo a santificação e renovação do homem interior pela voluntária recepção da graça e dos dons. Por este meio, o homem de injusto se torna justo e de inimigo, amigo, de modo a ser herdeiro da vida eterna segundo a esperança (Tit 3, 7). As causas desta justificação são as seguintes: a [causa] final: a glória de Deus e a de Cristo, bem como a vida eterna; a eficiente: o misericordioso Deus, que sem merecimento nosso lava e santifica (1 Cor 6, 11), assinalando e ungindo com o Espírito Santo da promessa que é o penhor de nossa herança (Ef 1, 13 ss). A [causa] meritória, porém, é seu muito amado Filho Unigênito, Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo nós inimigos (Rom 5, 10), pela nímia caridade com que nos amou (Ef 2, 4), nos mereceu a justificação e satisfez por nós ao Eterno Pai, com sua santíssima Paixão no lenho da cruz [cân. 10]. A [causa] instrumental é o sacramento do Batismo, isto é, o “sacramento da fé”1, sem o qual jamais alguém alcançou a justificação. Enfim, a causa única formal é “a justiça de Deus, não enquanto ele mesmo é justo, mas enquanto nos torna justos”2 [cân. 10 e 11], quer dizer, enquanto por ele enriquecidos, fica a nossa alma espiritualmente renovada, e não só passamos por justos, mas verdadeiramente nós nos denominamos e somos justos. Pois recebemos em nós a justiça, cada qual a sua, conforme a medida que o Espírito Santo distribui a cada um como ele quer (1 Cor 12, 11) e segundo a disposição e cooperação de cada qual.[12]
E R. C. Sproul, explicando essa concepção de justificação, comenta:
Aqui vemos a visão católica romana da justificação. É calunioso a Roma acusá-la de um pelagianismo puro que ensina a justificação pelas obras. Roma tem uma visão da justificação pela fé. Fé como o começo, o alicerce, e a raiz da justificação, como condição necessária para justificação. […] Entretanto, não é a causa instrumental (o meio pelo qual) da justificação – a causa instrumental é o Batismo incialmente e o sacramento da Penitência depois para quem precisa de um segundo esteio da justificação, nem é causa suficiente da justificação. […] Aqui fica claro que, embora a justificação seja pela fé, ela não é pela fé sozinha.[13]
Na definição do conceito de justificação pela fé, Roma errou o tiro por um centímetro, e se distanciou da verdade por um quilômetro.
Várias passagens há que demonstrem a situação de Cristo como sendo o único mediador entre Deus e os homens, o que parcialmente também é crido pela igreja de Roma, porém, o ponto de divergência quanto a mediação consiste também na crença de que a igreja estaria em algum lugar entre Cristo e os homens, e apesar da citação de Jesus quanto ao poder das chaves possuído pela igreja, exercido através da disciplina, por exemplo, não vemos em quaisquer passagens do novo testamento que o colégio apostólico ou mesmo a liderança da igreja tenha interferido no processo de salvação, alegando ter o poder de remir pecados ou coisa do gênero.
Assim, mesmo que tenhamos nos distanciado de 1000 à 1400 anos do concílio de Jerusalém que rechaçou a ideia de salvação pelas obras, e que esse erro ressurgiu nesse período atenuada pelo argumento de “colaboração das obras” no processo de salvação, fica claro a corrupção e alteração do conceito bíblico.
Infelizmente, esse pensamento deu origem a uma gama de outras heresias e erros que apodreceram o cristianismo em toda a Europa, como as indulgências. Segundo Champlin[14], as indulgências consistem em uma remissão temporal do castigo advindo por conta de algum pecado cometido. Apenas o papa teria poder para conferir uma absolvição plena à algum fiel. Ainda que pareça que as indulgências não interferem no processo salvífico, o conceito de “pagamento” através de obras para obtenção do favor divino está lá, o que remete mais uma vez ao fato de que é impossível acertar no fim, algo que começou errado, ou seja, a igreja de Roma construiu toda sua soteriologia sob o alicerce da justificação pela fé em adição as obras com vistas a salvação.
Foi assim que o princípio bíblico foi se perdendo através dos séculos, pouco a pouco, a igreja foi tomando espaço, invadindo uma jurisdição que não é sua, até que por fim, asseverou seu pensamento através da formulação dessa doutrina por meio dos concílios. Porém, aprouve a divina providência a libertação das algemas do erro, fazendo explodir a reforma.
A reforma surge como um grito de libertação numa Europa escravizada pelo erro. Antes do grito de qualquer outro “sola” que a reforma formulou, era necessário estabelecer a doutrina segundo o princípio bíblico, e isso só poderia ser possível se o Livro da Lei fosse encontrado novamente, como foi no período do rei Josias (II Crônicas 34).
Na idade média, pouco antes da reforma, como mencionamos antes, a tradição foi teoricamente posta ao lado da Escritura, e na prática foi colocada acima da mesma, o que é um contrassenso à tradição histórica da própria igreja que vem desde o antigo testamento. Em toda matéria de orientação, conhecimento da vontade de Deus para o povo, e alimentação espiritual – a vida da igreja de modo geral – sempre se recorreu ao que fala a Lei do SENHOR, naquele tempo proclamada “aos pais pelos profetas” (Hb 1.1), por último pelo Filho, e este através da Escritura. “Lutero reivindicou que a tradição – especialmente a tradição mais recente da idade média – deveria ser rejeitada em favor da Escritura”.[15]
É importante frisar que antes de Lutero, outros nomes batalharam pela volta à Escritura, como John Wicliff, que resistiu fortemente a qualquer autoridade extra-bíblica.[16]
Tendo sido estabelecida a Escritura como autoridade sobre a igreja, agora volta-se para ela buscando compreender como salvação é ofertada ao pecador.
Mais uma vez, o concílio de treno nos ajuda a compreender a reação reformada ao erro católico, quando diz: “Se alguém disser que o ímpio é justificado somente pela fé, entendendo que nada mais se exige como cooperação para conseguir a graça da justificação, e que não é necessário por parte alguma que ele se prepare e disponha pela ação da sua vontade — seja excomungado [“anátema” em outras traduções]”.[17]
Era exatamente isso que declarava a reforma. O pecador é salvo por Cristo mediante Sua graça abundante sobre a vida do mesmo, e essa mesma graça opera no pecador a fé para que creia que Cristo Jesus é o Filho de Deus e seu redentor.
A contenda está na forma como o pecador é declarado justo pela fé em Cristo Jesus. Para Roma, pelas obras, o pecador é considerado justo de forma inerente, ele torna-se justo em si. Porém, o conceito reformado está baseado no princípio de que a justiça de Cristo é imputada, mas não o torna materialmente justo. Ele é visto como justo por meio da obra de Cristo, que é o seu redentor, a pessoa no qual o pecador, crendo, está fiada.
Lutero e os reformadores insistiam que a justiça pela qual somos justificados está extra nos. A que nos é imputada é uma justiça que está “fora de” ou “à parte” de nós.[18]
É por meio da fé, enxertada em nós pela graça, que o pecador é salvo. Somente a fé (SOLA FIDE) na redenção conquistada para nós por Cristo Jesus, é o veículo pelo qual somos salvos, no nome que é dado entre os homens para a salvação (At 4.12). Nossas obras são como trapos imundos (Is. 64.6), e isso porque o homem sem Cristo está num estado de rebelião contra Deus e seu Cristo. Em nosso estado natural, somos avessos ao SENHOR, logo, se pela graça ele não nos trouxer à vida em Cristo, nos tornando capazes de crer naquele que tem o poder de fazer-nos filhos de Deus, jamais, pela nossa própria vontade ou obras obteríamos qualquer favor do SENHOR, seríamos aniquilados pela sua santa e justa ira, e queimaríamos como lenha por toda eternidade.
Esse foi o conceito defendido pelos reformadores. Diante da heresia romana, que pensava poder colaborar de alguma forma para a salvação, Wicliff, Hus, Lutero, Calvino e outros, gritaram em alto e bom som que “do SENHOR vem a salvação” (Jn 2.9).
Desde o antigo testamento a dádiva da salvação era dada aos homens de uma única forma: mediante a fé. Analisando toda a história da igreja, esse princípio foi mal compreendido por muitas pessoas. Mas o que realmente as impediu de perceberem que somente pela fé obtêm-se a salvação em Deus? Embora pareça muito simplória, a resposta não aponta para uma má compreensão teológica, pois a Escritura é suficientemente clara a todos os crentes, quer sejam doutos ou indoutos[19]. Parece-nos que o problema está no tamanho do ego do homem, em aceitar que desde o momento em que sua existência passa a ser fato, ele depende unicamente de Deus para absolutamente tudo.
Por que deveria ser diferente em se tratando da salvação? Por que no momento de sua restauração, ao homem deveria ser dado a condição de somar forças com Deus na concretização desse objetivo? A questão também não parece ser esta, mas se o homem teria condições de fazê-lo. Como faria? Seu coração é mau. Suas obras são más, mesmo as “melhores” delas. Todo do designo do seu íntimo está pervertido e corrompido pelo pecado (Gn 6.5). Ele sequer teria condições de se relacionar, ainda que da forma mais distante com Deus, como poderia influenciar de alguma forma em sua salvação?
Era necessário a provisão de um meio eficaz para salvá-lo. Mas o Criador é justo, e invariavelmente santo, apenas a morte satisfaria sua ira, pois o coração do SENHOR está contra toda forma de pecado e impiedade. Um cordeiro deveria ser morto para que o pecado fosse tirado. E assim foi.
No passado, os homens esperavam pelo que viria. Em determinado momento, o prometido se cumpriu, e o anúncio se iniciou. No presente, os homens olham para trás e vêem o Cordeiro vivo, que foi morto (Ap 5.6), e, através do sacrifício desse Cordeiro, foram também vivificados e nele têm fé. Então, são salvos.
Tanto no antigo quanto no novo testamento, a mensagem que perdura é esta: o homem não pode cozer folhas para cobrir sua exposição. Noutras palavras, o homem não pode se salvar pelas suas próprias obras, pois são imperfeitas, tal qual uma folha. Somente as vestes do Cordeiro de Deus, o podem restaurar à comunhão com o Criador.
O plano de salvação também foi sabiamente pensado para nos humilhar, e percebermos o quão somos pequenos, e o quão o SENHOR é grande. O amor de Deus por seu Filho, nos chama a salvação proporcionada por Ele mesmo. Ele é o autor da nossa fé, sem ele, nem o conheceríamos como Pai, apenas como aquele que no juízo, nos puniria, por termos nos rebelado contra ele, em desobediência à sua Palavra.
À pelo menos duas ações, a doutrina da salvação pela fé somente (SOLA FIDE) nos desafia:
A primeira delas é à humilhação. “[…] À um coração quebrantado e contrito não desprezarás, ó Deus” (Sl 51.17). As palavras do salmista refletem o sentimento de um homem compungido e estilhaçado pela consciência de seu pecado, e a sinceridade em declarar que reconhece que nada há que possa fazer para agradar a Deus, como é dito na primeira parte do verso. Não são obras humanas que podem fazer com que Deus o perdoe, mas apenas a fé na salvação no SENHOR pode de fato restaurá-lo a comunhão com Ele.
As obras dos homens são como nada. Não é sequer imaginável que alguém possa achar que pode comparecer diante de Deus sem que esteja fiado em Cristo e sua obra. Somente um homem perfeito pode permanecer diante do Criador (Sl 15), e esse homem é Cristo.
Apenas pela graça mediante a fé o homem pode ser salvo, e somente por ela. Assim quis o SENHOR. Nossa postura diária deve ser de profunda humildade, reconhecendo que somos miseráveis pecadores, que carecem constantemente da graça de Deus, e que sem ela, jamais seríamos capazes de alcançar a misericórdia do Altíssimo com vistas à salvação, e estaríamos então perdidos para sempre.
A segunda é uma constante alegria e júbilo. Mesmo sendo tão pobres, tão miseráveis, o SENHOR sorriu para nós, nos elegendo em seu Filho para a salvação. A grandeza dessa benção é incomensurável, indizível, jamais poderíamos expressar com justas palavras o bem que nos fez Deus. A alegria de gozar desse privilégio, é de tal forma poderosa, que nos inspira a vivermos alegres e contentes em qualquer situação que nos sobrevenha nessa vida, pois o que poderá se comparar à glória que em nós a de ser revelada? (Rm 8.18).
Nossas obras, além de serem insuficientes para nos salvar, não assegurariam nada, o que proporcionaria uma vida de completo desespero, pois se agora acertamos (de alguma forma) e depois erramos, como saber se nossa salvação está garantida? Como viver sabendo que nossa salvação está oscilando numa balança que a qualquer momento pode estar contra nós a partir do momento em que falharmos? Em Cristo a vitória é certa e já foi adquirida. Não há alterações ou variações no plano salvífico, pois o sacrifício de Jesus foi perfeito, satisfez completamente a justiça do Pai, e assim, essa obra garantiu a nós uma benção inalienável. Louvemos ao SENHOR por que ele é bom, e suas misericórdias duram para sempre! Demos graças ao SENHOR, por que fez notória sua benção aos pequeninos, e elevou os abatidos! Brademos com grande júbilo Àquele que por nós se entregou, e por nós, conquistou a vida eterna!
Pela fé em Cristo Jesus, o Filho de Deus, e somente pela fé. Pela fé na expiação dos nossos pecados, e na graça imerecida dirigida a nós e somente por ela, somos salvos. Assim foi o grito da reforma. Assim seja o grito da igreja hoje e sempre, amém.
A salvação pela fé somente é um princípio canônico. Como vimos, é algo que perpassa todo o antigo testamento, iniciando-se ainda em gênesis, percorrendo toda a história do povo de Israel, chegando até os últimos profetas, culminando em Cristo, sendo aplicado no novo testamento e pregado por toda a igreja, embora em determinado momento, a mesma tenha se esquecido tentado corromper esse princípio. Porém, aprouve ao SENHOR, levantar homens preparados para buscarem uma volta ao precioso ensinamento bíblico.
Sempre será necessário vivificar esse conceito em nossos corações, pois, assim como foi no período pré-reforma, temos a tendência a nos esquecermos nos pilares que sustentam nossa fé, o que nos encaminhará a sempre olhar para trás, buscando não desprezar o que fez o SENHOR através da vida de tantos homens que dedicaram tempo à clarificação do conceito não só de salvação pela fé, bem como de todos os ensinos que formam o corpo da sã doutrina professada e crida pela igreja de nosso SENHOR Jesus.
Que sejamos diligentes nisso: em glorificar a Deus pelo que foi a reforma e observar sua relevância para nós hoje, e em estarmos prontos a defender as verdades cristãs com zelo e temor ao SENHOR.
Cristo triunfa!
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