Nesta série, vamos entender o que significou Os Cânones de Dort com o Dr. R. Scott Clark. Todo conteúdo está postado numericamente em ordem subsequentes, para ter amplo e completo entendimento em torno dos Cânones de Dort é necessário que siga as dispensações nas quais os artigos foram publicados aqui no site. Este texto é o sexto artigo da série, visite todos os artigos da série clicando aqui.
Talvez a queixa mais fundamental dos Remonstrantes contra a teologia reformada, a preocupação que mais animou o desejo de Armínio de rever a teologia reformada, foi a acusação de que a visão reformada faz de Deus o autor do mal. Em seu desejo de resolver esse problema, Armínio argumentou que as relações entre Deus e a criação não são o que o Agostinho (354-430) e os reformadores protestantes haviam dito. Ele concordou com o teólogo jesuíta espanhol Luis de Molina (1535-1600), que Deus conhece todas as escolhas possíveis que os seres humanos possam fazer e até organizou as circunstâncias de modo a limitar as escolhas humanas. Ainda assim, no esquema de Molina, Deus não destina ou predestina as escolhas humanas, que permanecem livres em relação a Deus. Em última análise, a solução de Armínio para o problema do mal era tornar Deus dependente das escolhas humanas. Outra maneira de colocar isso é dizer que, à sua maneira, Armínio era um racionalista. Ele colocou a razão humana acima da Sagrada Escritura. Sua revisão da teologia reformada não foi impulsionada fundamentalmente pelas Escrituras nem pelo histórico entendimento agostiniano das Escrituras, mas pela razão.
A existência do mal é um grande problema para todas as tradições cristãs, mas as Escrituras não nos permitem imaginar um mundo onde Deus que fez todas as coisas a partir do nada, que endureceu o coração de Faraó (Ex 10:20), pode ser dependente das escolhas livres daqueles a quem ele formou do pó. Como foi observado no artigo anterior, se não houvesse crise, Romanos 9 seria lido de maneira diferente. Tornar Deus dependente das escolhas livres dos humanos não é solução para o problema do mal. Isso só piora as coisas.
É verdade que não podemos dizer exatamente como é que Deus é absolutamente soberano sobre todas as coisas, incluindo as escolhas humanas, e ainda assim, de maneira alguma responsável moralmente pelas escolhas pecaminosas e pelas más conseqüências do pecado. Devemos dizer tudo o que a Escritura diz, mas não devemos dizer mais nada além disso. Quando Jó exigiu que o Senhor prestasse contas de si mesmo, o Senhor respondeu por dois capítulos (38–40) desafiando a postura de Jó em reclamar a Deus. Em suma, o Senhor constantemente se recusa a responder a questão que Armínio procurou resolver.
No Cânon de Dort (CD) 1.4, o Sínodo começou a responder a Armínio e aos Remonstrantes (seus seguidores), restabelecendo alguns princípios básicos.
Art. IV. A ira de Deus permanece sobre aqueles que não creem neste Evangelho. Mas aqueles que o recebem e abraçam Jesus, o Salvador, com uma fé verdadeira e viva, são redimidos por Ele da ira de Deus e da perdição, e presenteados com a vida eterna.
Há duas palavras nas Escrituras, lei e evangelho. A lei de Deus é santa e justa e declara que Deus exige conformidade perfeita à sua santa lei. Fomos criados capazes de guardar essa lei e mantê-la para entrar na bem-aventurança eterna. Na misteriosa e soberana providência de Deus, Adão escolheu livremente não obedecer. Ele escolheu acreditar em uma mentira e não na verdade, para adorar a criatura e não o Criador. Armínio, no entanto, rejeitou essa compreensão do nosso estado original. Ele rejeitou a doutrina reformada da aliança das obras como “arbitrária”. Essa revisão da teologia reformada revela novamente seu racionalismo. Em vez de submeter seu intelecto à revelação divina, Armínio tinha um padrão em seu intelecto que achava que deveria ser satisfeito. Na realidade, no entanto, não há nada “arbitrário” sobre o mandamento de Deus para que Adão não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal. Foi um resumo da lei moral. Foi uma expressão simbólica da lei moral, que é fundamentada na natureza de Deus. Essa lei exige que amemos a Deus com todas as nossas faculdades e nosso próximo como a nós mesmos. É o que Adão deveria fazer como representante de toda a humanidade. Por causa de nossa desobediência voluntária, nós nos colocamos sob a ira e o julgamento de Deus. A culpa é inteiramente nossa. Nós escolhemos desobedecer. Nós escolhemos acreditar em uma mentira e não na verdade.
Aqueles que creem, que depositam sua confiança em Jesus como seu substituto Justo e Salvador, são “libertos da ira” de Deus e “da destruição”. Essa é a essência da salvação. Há mais que pode ser dito sobre a salvação, mas certamente começa com a libertação da ira divina. A segunda coisa que as igrejas reformadas confessam neste artigo é tão fundamental que a vida eterna é um presente. Este modo de falar, claro, vem de Efésios 2:8: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus”. Todos os benefícios de Cristo, justificação, santificação e glorificação são todos um presente de Deus.
Por suas propostas revisões da teologia reformada, Armínio e os Remonstrantes tentaram transformar o dom gratuito de Deus em salário. No esquema arminiano, a salvação é pela graça (pela qual eles não afirmam exatamente o que nós dizemos) e por nossa cooperação livre com a graça. A graça redefinida dos Remonstrantes, essencialmente como aquilo que Deus concede, trata-se de uma cooperação. Quando os Remonstrantes falavam de graça, não afirmavam o favor incondicional de Deus aos pecadores perdidos, mas sim a assistência condicional àqueles que fazem a sua parte.
No CD 1:5, as igrejas reformadas acrescentam:
Em Deus não está, de forma alguma, a causa ou culpa desta incredulidade. O homem tem a culpa dela, tal como de todos os demais pecados. Mas a fé em Jesus Cristo e também a salvação por meio dEle são dons gratuitos de Deus, como está escrito: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus…” (Ef 2:8). Semelhantemente, “Porque vos foi concedida a graça de…” crer em Cristo (Fip 1:29).
A assimetria é um conceito importante na teologia reformada. Não confessamos que o decreto de salvação de Deus é exatamente simétrico ao seu decreto de reprovação. É claro que o eterno decreto divino está envolto em mistério. Nenhum de nós esteve presente na eternidade nem qualquer um de nós tem acesso ao intelecto divino. Portanto, é um erro simplesmente supor que devemos pensar nos decretos como exatamente paralelos (simétricos) em todos os sentidos. Quando falamos do decreto de reprovação, isto é, o decreto de Deus para permitir que os caídos permaneçam em seu estado pecaminoso, pensamos primeiro na causa da culpa, incredulidade e pecado. A causa da queda não está em Deus. Que as igrejas disseram que isso poderia ser uma surpresa para aqueles que assumem o que os Reformados acreditavam. Pelo contrário, estamos contentes em deixar em mistério a causa do pecado, a Escritura diz quem pecou: nós mesmos. Deus não pecou. Ele não desobedeceu. Ele não transgrediu. Nós fizemos e fizemos isso livremente, ou seja, sem compulsão. Não havia nada em nós (por exemplo, concupiscência) que nos impelisse a pecar e nenhuma coisa criada agisse sobre nós para nos levar a pecar. Por trás das cenas, por assim dizer, está o decreto divino, mas as Escrituras (Rm 5:12,14; 1Tm 2:13-14) sempre nos apontam para nossas escolhas. Reprovação é por obras. Os réprobos são assim por causa de suas escolhas, seus pecados. Reprovação é condicional.
O oposto é a verdadeira salvação. Ela é incondicional independente daquilo que fazemos ou deixamos de fazer. É um presente gratuito e incondicional. Não só o Sínodo citou Efésios 2:8, mas Filipenses 1:29. A salvação não é conquistada por nós. Alguém a conquistou para nós e nos foi dado gratuitamente. A fé, que recebe a salvação, é um dom e a própria salvação é um presente. Este foi o argumento central contra os Remonstrantes. A salvação é uma ajuda a graça e uma cooperação com ela ou é somente pelo favor incondicional de Deus, somente pela fé? Dessa maneira, a própria Reforma estava em jogo.
2019 © Traduzido por Elnatan Rodrigues, revisado por Amanda Martins. Texto original em The Heidelblog, essa série pode ser encontrada também em Abounding Grace Radio.